sexta-feira, 26 de setembro de 2014
Árvores Vivas
Para a Juliana Gatti, que é uma árvore que fala!
Aí começou assim: eu achava que
tinha pessoas que eram árvores. Porque árvores, para mim, eram coisas feias,
sujas, no meio da cidade. Não dava para sentar perto delas, porque tinha terra
que sujava o vestido, e restos de papel, comida e bituca de cigarro. Tinha até
gente que fazia xixi e cocô no pé da árvore! Eca!
E eu via pessoas que eram assim
também. Ficavam lá, em silêncio, sujas e com os olhos vermelhos, sentadas em
pedaços de papelão ou em colchões tão velhos que nem dava mais para chamar de
colchão. “Eles moram na rua”, dizia minha mãe. “Não chega perto, porque pode
ser perigoso”. E eu não chegava.
Mas eu sabia que as árvores
podiam ficar bonitas se a gente cuidasse delas, porque na minha casa sempre
teve um jardim, e ele era muito lindo. O seu Adelmo, nosso jardineiro, picava
as plantas cabeludas, colhia as folhinhas secas, molhava, trocava a terra... E
elas ficavam verdinhas, verdinhas, florzinhas, florzinhas, coloridinhas como o
meu quarto!
Por que uma pessoa não pode ficar
assim também?
Aí um dia eu estava voltando da
escola e sentei perto de um homem, que parecia uma árvore seca e cinzenta. Ele
me deu bom dia e pediu comida. Eu tirei da minha lancheira biscoito integral e
suco fresquinho de melancia. Ele comeu e me agradeceu. Depois se levantou e foi
embora. E eu fiquei lá, com aquela cara de “e agora o que é que eu faço?”.
Depois que o homem já tinha ido
muito embora (ou seja, ele foi tão embora que eu nem estava mais me preocupando
com ele), eu comecei a olhar a meu redor. Eu estava sentada debaixo de uma
árvore! E tinha resto de comida, bituca de cigarro e cheiro de xixi de gato. Ai
meu Deus! Mas eu estava ali... E ainda tinha na minha lancheira uma maçã e uma
garrafinha de água.
Olhei para a árvore. De alguma
forma, ela me lembrou aquele homem e eu, brincando, resolvi perguntar: “O
senhor está com sede? Ainda tem maçã e água na minha lancheira”. E foi aí que a
árvore respondeu: “Não, obrigado, já estou satisfeito”.
Rá! Essa é boa! Árvore que fala!
Eu fiquei eufórica! Era estranho,
mas também parecia muito natural, não sabia o porquê. Afinal, se eu podia ver
as pessoas como árvores, por que não podia ver as árvores como pessoas? “Ô dona
árvore, a senhora fala, então? Que legal!”. A árvore respondeu: “Senhora não,
que eu meu nome é Fazimiro Folhaseca. Um pouco mais de respeito, menina!”
Fazimiro Folhaseca! Que figura!
Eu não podia acreditar. Aliás, ninguém ia acreditar. E pensando bem, eu nem
queria que acreditasse. Queria guardar aquele segredo só para mim. Eu era amiga
de uma árvore... “Ô, seu Fazimiro, eu não sabia que as árvores eram vivas! Essa
aí é nova para mim”.
“Ah...”, dise o Fazimiro com tom
de professor, “quer dizer que a senhora não sabia que uma árvore é viva?
Menina, olhe ao seu redor. O que é vivo por aqui?”. Eu olhei e apontei uns
adultos, umas crianças, três pássaros, dois cachorrinhos e um gato. “É só isso?
Tem certeza?”, perguntou a árvore. Eu fiquei confusa, mas disse que sim. “Pelo
menos não tem mais nada por aqui que mexe e faz barulho...”, disse,
constrangida.
Eu não tenho certeza, mas acho
que foi nessa hora que eu ouvi o Fazimiro falando baixinho algo como “esse vai
ser um dia daqueles...”. Depois ele voltou a falar comigo e pediu: “Menina, vem
cá e me dá um abraço?”. Ele pediu com tanto carinho, com uma voz tão doce de
árvore de fruta doce, que eu não resisti, e a abracei. Eu a abracei com muito
carinho.Tanto carinho que fechei meus olhos. E senti.
Senti que tinha um líquido que
percorria por dentro de sua casca, que parecia como o sangue que esquenta o meu
corpo. Senti que a casca era às vezes áspera, às vezes macia, e que havia
alguns insetos que subiam e desciam pelo tronco. Senti que embaixo de suas
folhas era mais fresco que quando eu estava debaixo do sol quente, e que o
vento ali embaixo era gostoso e soprava sons engracadinhos em meu ouvido. Senti
que eu pisava em suas raízes e que elas desciam fundo, para um lugar onde
habitavam minhocas e muitos pequenos seres.
Senti tantas coisas que meu
coração começou a bater mais forte, e é como se eu e a árvore fôssemos um só.
Eu senti que a copa da árvore (a minha copa) dançava para alegrar o sol, e que
para muito além de suas raízes, a árvore se conectava com águas subterrâneas e
rios, que na minha cidade estavam aprisionados, poluídos e tristes. Senti que
eu (a árvore) era paciente, amoroso, e que sentia muita falta dos córregos
d’água, de outros bichos, e que mesmo assim eu continuava sendo um caloroso
amigo dos insetos, dos gatos, dos cachorros, dos pássaros e das pessoas.
Eu senti que eu era uma árvore.
Uma árvore viva como o sol nascente. Como o rio sapeca. Como a terra fofa e
molhada. Como a lua prateada. Como a joaninha que pousou um dia na ponta do meu
nariz. Como o jardim da minha casa. Como eu, o papai e a mamãe. Como aquele
triste homem para quem, minutos antes, eu havia oferecido biscoito integral e
suco de melancia. Uma viva árvore viva.
Acordei no fim da tarde, com
minha mãe me chamando. “Filha! Acorda, filha! Estava procurando você que nem
uma louca!”. Eu não sabia onde estava, nem que horas eram. Sabia que eu era
(que eu sentia) puro amor. Sorri para minha mãe com um sorriso doce de árvore
de fruta doce, e fui em silêncio para casa. E nunca mais fui a mesma.
Comecei a sentar diariamente
perto das árvores. Conversava com elas, meditava, ficava em silêncio. Sonhava
sob sua sombra. Fazia deliciosos piqueniques ao seu redor, que compartilhava
com os insetos, os passarinhos, e as pessoas que, pouco a pouco, começaram a
sentar ao meu redor também. Elas não me conheciam, nem eu as conhecia, mas elas
gostavam de curtir a árvore e toda a vida que existia dentro, fora e ao redor
dela. E com isso, nós erámos felizes.
Aquele homem, um dia, voltou e
sentou-se conosco. Comeu, bebeu, disse uma ou duas palavras. Ele parecia feliz
de estar ali, conosco. Era como se ele estivesse esperando a vida inteira para
que aquele lugar onde ele havia sentado tantas vezes pudesse estar cheio de
vida, como talvez um dia tenha sido. Contente e em paz, ele se recostou na
árvore, de olhos fechados, com um semblante de quem está indo lá para o fundo,
onde as raízes das árvores tocam o coração do mundo. Fomos todos embora, e ele
ficou. Na outra manhã, quando voltei, ele ainda estava lá mas, de certa forma,
não estava mais, porque em seu corpo não havia mais ar, e ele estava frio como
um picolé. Mamãe me explicou que ele havia morrido.
Fiquei triste, e ao mesmo tempo
contente, de que aquele homem que parecia uma árvore seca e cinzenta, havia
morrido com a mesma paz de uma árvore que descansa à beira de um lago
tranquilo. Como ninguém sabia seu nome, nem de onde veio, papai resolveu ele
mesmo cuidar do pobre homem, que foi levado para um lugar chamado crematório,
onde seu corpo foi queimado e virou um punhado de cinzas. Eu trouxe as cinzas
para casa e resolvi jogá-las debaixo de uma árvore.
No outro dia, com o coração
carregando tristeza e respeito e a mochila carregando uma caixinha com as
cinzas do homem desconhecido, fui conversar com Fazimiro. Chorei um pouco, e
mostrei a ele a caixinha com os restos do homem. “Minha filha”, disse Fazimiro,
“Acho que não contei para você, mas eu já estou neste planeta há pelo menos cem
anos. Eu sou até jovem, porque tem árvores que chegam a viver mais de quinhentos
anos. Nesse tempo todo, já vi muitas pessoas, animais e insetos irem e virem.
Este homem não foi o primeiro, nem será o último”.
“Só que ele não foi embora para
sempre”, disse a árvore. “Assim como vocês, humanos, se alimentam de nossos
frutos, folhas e raízes, nós também nos alimentamos de tudo que vocês deixam na
terra e que nós podemos absorver. Nós não absorvemos os sacos plásticos e as
bitucas de cigarro (na verdade essas coisas nos fazem um mal danado), mas o
corpo de vocês, depois de certo tempo, vira alimento para nossas raízes, nosso
tronco, nossos galhos e tudo que a gente produz. Nós vivemos em vocês e vocês
vivem em nós. Por isso que para nós, árvores, não existem dois seres separados
– humanos e árvores. Somos todos um só. Árvores são seres humanos vivos. E
seres humanos são árvores vivas. Claro que temos algumas diferenças – vocês andam,
a gente não. Vocês têm o poder de construir e fazer coisas que nós não
conseguimos. Mas todos nós respiramos, amamos, criamos coisas belas para os
outros e viemos do mesmo lugar – a natureza”.
Naquele dia, novamente, senti
como se eu Fazimiro fôssemos um só. E, estando com aquela árvore sábia e
carinhosa, entendi que as árvores são testemunhas de tudo que acontece em nossa
vida humana. Elas nos assistem e esperam, pacientemente, para que nós as
percebamos, para que nós as reconheçamos e para que nós, de livre e espontânea
vontade, decidamos sentar junto delas e ser felizes com elas. Elas não ficam
paradas aguardando serem destruídas. Elas lutam. Mas elas não lutam contra nós.
Elas lutam a nosso favor.
Parece igual, lutar contra e
lutar a favor, mas não é. Quando a gente luta contra alguém, a gente xinga,
bate, destroí e quer se vingar. Quando a gente luta a favor, a gente sabe
esperar, a gente consegue tolerar até ser xingado e insultado, até que, com
amor, a gente ache o jeito mais doce de árvore de fruta doce de convencer a
outra pessoa de que bom mesmo é amar, estar junto e ser feliz. E é isso que uma
árvore faz: ela sabe esperar até que sua sombra, seus frutos, a melodia de seus
amigos pássaros e toda a vida que ela faz brotar a seu redor falem mais alto
que nossos serrotes, nosso desprezo e nossas bitucas de cigarro.
Pelo menos, foi isso que
aconteceu comigo. E eu cresci assim, com esse jeito de árvore. De árvore viva.
E aí eu casei, tive filhos e netos, e um dia fiquei velha. Velha, mas ainda
teimosa, moleca e engraçada, como sempre fui desde a época em que conheci
Fazimiro. Por isso que, ao longo dos anos, eu fui comprando as casinhas ao
redor da casa dos meus pais, e fui abrindo jardins e bosques, abertos para todo
mundo passear e aproveitar. O povo da cidade gostou tanto que as árvores dos
meus bosques viraram ponto turístico! Só não consegui proteger Fazimiro, porque
ele era uma árvore na calçada da rua. Pertencia à prefeitura, e não a mim.
E um dia quiseram cortar
Fazimiro. Diziam que iam construir um novo prédio no lugar, um lugar onde iam
vender lindos artigos de madeira, uma loja chique onde ia até ter um salão
contando a história das árvores. Queriam aproveitar que meu bosque era lugar
turístico. Queriam aproveitar para ganhar mais dinheiro. Fala sério! Eu já
estava velhinha, mas não tive dúvida. Fui para baixo de Fazimiro e lá fiquei.
“Só saio daqui depois que prometerem que não vão cortar Fazimiro jamais!”, eu
gritei. “Ele é uma árvore de quase de duzentos antos, e é meu amigo!”.
Claro que o pessoal achou que eu
estava doida. Menos a minha família e as pessoas que frequentavam os bosques da
minha casa. Eles sabiam (porque eles sentiam) que as árvores eram vivas, que
eram nossas irmãs. E, em silêncio, eles me apoiaram. E ali eu fiquei. Um dia,
dois, três, uma semana... E como eu já era uma velhinha (pelo menos nessa hora
isso conta!) a prefeitura começou a ficar preocupada. Já pensou se eu morresse
por causa deles? Ninguém queria ser a responsável pela morte de uma velhinha debaixo
de uma árvore qualquer na calçada de uma rua qualquer.
Demorou, mas um dia minha neta
veio me contar: “Vovó, chegou um comunicado oficial da prefeitura. Não vão mais
cortar Fazimiro. Na verdade, querem até abrir um novo bosque no lugar onde ia
ser a loja!”. Meus olhos se encheram de lágrimas, e o coração chorou de
alegria! Cansada e feliz, reclinei-me no tronco de Fazimiro, como há muitos
anos atrás aquele homem havia feito depois de compartilhar de nosso delicioso
piquenique. Fechei os olhos e sorri, com um semblante de quem está indo lá para
o fundo, onde as raízes das árvores tocam o coração do mundo. E dormi.
Quando acordei, eu já não era eu.
Era uma mudinha de árvore plantada no meio do bosque da minha casa. Minhas netas
estavam crescidas e já tinha até um bisneto para nascer. Observei tudo com
alegria. Um dia, uma das minhas netas (a mesma que me disse que não iam mais
cortar Fazimiro) sentou próximo de mim e me falou, com carinho, de como sentia
a minha falta desde que eu havia morrido. Ela me disse, com um sorriso doce de
árvore de fruta doce, que estava certa de que minhas cinzas estavam agora vivas
naquela jovem árvore. A jovem árvore que era eu.
Mas isso aconteceu há muito tempo,
minha menina. Um tempo em que o mundo era muito diferente do que você conhece
agora. Naquele tempo, as cidades eram cinzas e feias, os rios eram poluídos e
aprisionados, e as pessoas muitas vezes eram tristes e apressadas. Não é como
agora, em que, nós, árvores, abraçamos e brincamos com os rios, as pessoas e os
animais. Hoje, as cidades são lugares felizes e limpos, e as pessoas sentam
juntas, em círculo, para conversar e fazer piqueniques ao redor de nós,
exatamente como você está fazendo agora.
Mas eu entendo que você esteja
surpresa. Mesmo nessa época, não é todo mundo que consegue ouvir as árvores.
Você é como eu: tem um dom especial. Talvez você ainda não entenda, porque é
muito jovem, mas saiba que tudo nesse planeta é vivo. Tudo, mesmo aquilo que
não se mexe e não faz barulho, tem a sua forma de respirar, amar e viver. Você
não acredita? Não tem problema. Vem cá, então. Me dá um abraço.
“Já não quero muita coisa... só um lugar sossegado onde possa me
sentar, pois estou muito cansado”, disse ele.
- Pois bem... (respondeu a árvore, enchendo-se de alegria) eu sou
apenas um toco... mas um toco é útil para sentar e descansar... Venha menino,
depressa, sente-se e descanse.
Foi o que o Menino fez. E a árvore ficou feliz....”
A árvore Generosa, Shel
Silverstein
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