sexta-feira, 26 de setembro de 2014
O Haiti é aqui, no meu coração
Quero agradecer a todas as
pessoas que seguiram seu coração e que me inspiraram a também seguir o meu.
Quero agradecer às pessoas que estão seguindo seu coração neste momento e que
fortalecem a minha busca. E quero pedir, clamar, convocar a todas as pessoas
que ainda não o fizeram que, por favor, sigam o seu coração, pois ele é um rio
que nos leva por paisagens deslumbrantes e que, inevitavelmente, nos faz
desaguar num oceano infinito de amor, felicidade e prosperidade.
A cada dia que passa, sinto que
cada momento, cada conversa, cada experiência, tem um significado tão profundo
para mim, que parece que estou constantemente no clímax do meu filme favorito.
Estou me dando conta disto mais ainda depois desta experiência no Haiti, onde
por diversos momentos do dia meus olhos marejaram de felicidade e eu senti um
vazio pleno e profundo no meu coração.
Não é a felicidade de “estar
fazendo o bem” num pais mais pobre que o meu. É a felicidade de ser eu mesmo e
de poder servir ao momento presente, independente do que se apresente nele.
Percebo que a mesma alegria que senti aqui é a mesma de quando eu estava
sentado em salas de reunião de grandes empresas discutindo outras ações bem
diferentes da que realizei esta semana, mas que estão recheadas da mesmo sabor
de propósito, serviço e conexão com o Amor Maior.
Sinto que a felicidade de me
sentir alguém que serve aos “mais necessitados” é uma felicidade passageira
para mim e desempoderadora para o outro. Mas a alegria de criar níveis de
conexão cada vez mais profundos com todos os seres – humanos ou não – em todos
os momentos da minha vida, isso me enche de êxtase. E ver como esses momentos
aos poucos vão se encaixando numa profunda teia de sentidos, que se liga à vida
de outras pessoas - uma teia que não sou eu que está tecendo, mas para a qual
eu contribuo como uma pérola - isso é realmente fascinante. É como uma grande
dança que vai se formando quando cada um ocupa seu lugar na dança: existe o
deslumbre de realizar o próprio passo, o de admirar o passo do outro e o de
contemplar com fascínio o regente dessa surpreendente e belíssima coreografia.
Aqui também é a minha casa
A primeira sincronicidade que
experimentei nesta viagem foi a de encontrar na fila para entrar no avião para
Porto Príncipe, ainda em Miami, uma brasileira que mora e trabalha no Haiti.
Foi muito curioso esse inesperado encontro e suas repercussões: sem saber, ela
me deu uma informação chave para o curso que eu daria logo em seguir – cuidado
com as traduções, pois a maior parte das pessoas não traduz exatamente o que
você fala. E, de fato, estar alerto para isso me ajudou a perceber o momento em
que precisei pedir reforços para que as pessoas realmente entendessem o que eu
estava falando durante o curso.
Além disso, foi muito
interessante perceber que sem os movimentos que fiz nos últimos meses para
aprender francês, para poder interagir mais com a família da minha esposa, eu
jamais poderia ter tido conversas significativas – embora rápidas, pois meu
vocabulário ainda é pequeno – com as pessoas daqui. O creole tem uma influência
bem importante do francês, que é, de fato, a língua oficial – embora seja
falado por apenas 20% da população. De todo modo, meu parco francês me ajudou a
compreender coisas importantes que estavam escritas ou que estavam sendo ditas,
e me permitiu criar algumas conexões que não teriam sido possíveis com a
tradução.
Outro presente foi conhecer meus
anfitriões: Dharma (Demeter), diretor dos programas da AMURT – Haiti,
originalmente da Bulgária, que mora no Haiti há 10 anos, e Daniel e Tasha, um
casal de americanos que está lá há pouco mais de um mês, com a intenção de
ficar. Certamente esse é um daqueles encontros que já estavam pré-marcados pela
vida, como se antes de encarnar a gente tivesse dito um para outro: “então a
gente se encontro no Haiti, no ano tal, na data tal, certo?”. Eu e Dharma, em
especial, sentimos tanto amor um pelo outro que é como se já fôssemos grandes
amigos há muito, muito tempo.
Todos os dias, enquanto ia para a
sede da AMURT – Haiti para o treinamento, e via e ouvia os habitantes de Porto
Príncipe, e depois, quando chegava lá e conversava, ria e me emocionava com as
pessoas, eu comecei a sentir uma sensação de lar muito profunda, que tenho
sentido em poucos lugares do mundo – especialmente fora do Brasil. Na minha
última noite, por fim, quando eu e Dharma fomos encontrar Augusto, diretor de
programas da Viva Rio, para um bate papo no restaurante super cool Cartier
Latin (com ótimo reagge ao vivo, por sinal), entendi: ele me contou que Rubem,
o fundador do Viva Rio, ao chegar no Haiti se apaixonou pelo lugar e as
pessoas, e hoje esta organização é uma das poucas orginalmente brasileiras que
faz trabalhos em outros países, e seu fundador, que pelo que entendi tem mais
de 70 anos, tem energia suficiente para passar 15 dias no Brasil e 15 no Haiti.
Enquanto ouvia Augusto, é como se naquele momento a vida estivesse dando um
contorno para o que eu estava sentindo: o Haiti também é a minha casa.
Um país de contradições
A primeira coisa que me
perturbou, antes mesmo de chegar no Haiti, foi que todas as pessoas que eu
encontrei desde que pisei nos EUA, para quem eu contava que iria para lá,
perguntavam-me: “você está indo fazer trabalho humanitário?”. E eu pensei: meu
Deus, que triste sentir que esse país está tão machucado que a única motivação
que as outras pessoas imaginam para viajar até lá é fazer o tal “trabalho
humanitário”. Em outras palavras: gente rica ajudando gente pobre. E, de fato,
eu estava indo lá para dar um curso para uma ONG, e não passear numa praia
bonita. Isso me deu o que pensar.
Em segundo lugar, foi muito
perturbador perceber, ao entrar no avião que levaria a Porto Príncipe, que além
de alguns haitianos, a maior parte dos passageiros eram americanos, pessoas de
língua francesa e outros estrangeiros como eu, todos com “cara” de que iam
fazer trabalho humanitário. O mais perturbador, na verdade, foi ver um grupo de
adolescentes americanos usando uma camisa escrito “Healing Haiti” (Curando o
Haiti) e claramente acompanhados por instrutores. Foi muito estranho pensar que
o sofrimento dos haitianos significa um trabalho de escola para alguns
adolescentes americanos. Não que não seja bom que esses jovens tenham essa
experiência – mas a lógica por trás dessa realidade é quase exasperante para
mim.
O Haiti experimenta um nível de
desenvolvimento que existe em algumas partes do Brasil, mas que pessoalmente eu
nunca vivi: a eletricidade é controlada – ricos, empresas, organizações
governamentais e ONGs têm gerador próprio, mas a maios parte do país (mesmo em
Porto Príncipe, que é a capital) só tem energia de uma certa hora da noite até
uma certa hora da manhã. O sistema de água baseia-se em cisternas que são
enchidas quando acabam – de vez em quando, não tem água para descarga, banho
etc. As ruas têm um cheiro incômodo de gasolinas; das que eu vi, nenhuma tem
farol, e muitas não são asfaltadas.
Assim como em lugares mais pobres
do Brasil, as ruas são tomadas por gente vendendo frutas, verduras e comidas de
todo o tipo, como frango frito e cachorro-quente, a 12 centavos de dólar cada
um, em média. Daniel me explica que as salsichas são feitas com o pior tipo de
sobra de carne, que os EUA exporta a um preço que parece barato, mas que
garante um bom lucro. Porto Príncipe não tem um cinema sequer – o único que
existia foi destruído pelo grande terremoto que assolou o país alguns anos
atrás. Existem alguns restaurantes, como o Cartier Latin, e grandes
supermercados, onde se encontra todo o tipo de produto – alguns da agricultura
local e muitos outros importados. Nesses locais, bem aclimatados com ar
condicionado, é onde a burguesia haitiana e os expatriados se encontram – é
quase como se fosse o shopping local. Uma pessoa com quem conversei me diz que
não sabe o que acontecerá quando acabar a missão da ONU no país, pois muitos
expatriados irão embora e, com eles, uma parte significativa da população que esquenta
o mercado de compras e aluguéis de Porto Príncipe.
Em outras conversas, fiquei
sabendo que desde o terremoto o Haiti virou uma loucura para as organizações
não governamentais. De repente, havia dinheiro para todo mundo: algumas ONGs
aumentaram seu quadro de poucas dezenas para centenas, ou de poucas centenas
para mais de mil. Milhões de dólares eram manejados por essas e outras
organizações, e uma boa parte do trabalho era bem operacional: receber e
distribuir alimentos e mantimentos. Numa certa altura, AMURT – Haiti resolveu
não aceitar mais esse tipo de trabalho e focar no que faz melhor:
desenvolvimento local. A rapidez com que o dinheiro entrou nesta época é
proporcional à dificuldade que foi gerada depois, para demitir boa parte desses
funcionários - a maioria haitianos, que não compreendiam porque agora não
tinham mais os seus empregos. As verbas diminuíram, e com o passar do tempo, as
coisas começaram a voltar à rotina.
O Haiti tem um presidente que,
segundo algumas pessoas com quem conversei, é apenas uma marionete do governo
dos Estados Unidos, que teria interesse em uma série de recursos naturais do
país – aparentemente, uma grande reserva de gás natural foi descoberta
recentemente, que seria bem maior que a da Venezuela. Daniel me conta que,
curiosamente, a embaixada americana no Haiti é a quarta maior do mundo – algo
que não parece proporcional à importância política e econômica do país no
cenário internacional. Na minha última noite lá, de repente fomos pegos por um
tráfico absurdo. Militares de aspecto duro, portando suas metralhadoras, ordenavam
agressivamente por onde as pessoas deveriam seguir, seja a pé, de moto ou de
carro. Primeiro, Daniel e Tasha acreditaram ser a equipe de de segurança de
Bill Clinton, que vem constantemente ao país, mas depois descobrimos ser uma
visita do presidente a um local próximo de onde estamos.
O local onde fiquei hospedado com
Daniel, Tasha e Dharma chama-se Petion Ville, um dos bairros mais chiques da
cidade – o que significa que lá estão as casas da pequena classe média e da
classe alta do Haiti, bem como embaixadas, órgãos governamentais etc. É lá que
moram a maior parte dos expatriados fazendo “trabalho humanitário” no país. Uma
pessoa me contou que morar em Petion Ville é a única maneira para ter acesso a
comodidades mínimas como luz e água. Lá também estão, pelo que entendi, os
“mulatos”, que compõem uma boa parte da classe alta haitiana – negros um pouco
mais claros, que surgiram da mistura entre os então escravos e os colonos
franceses, que foram expulsos ainda no começo do século XIX. O Haiti foi,
segundo as pessoas com quem conversei, a primeira nação independente das
Américas, e seus heróis constam nas folhas da moeda local.
Muito embora a grande maioria da
população fale creole, a língua oficial é o francês e essa língua que está em
todos os materiais oficiais – nos avisos dos aviões, nos papéis oficiais do
governo. Uma pessoa me contou que muitos haitianos, se alguém perguntar, não
admitirão que não falam francês, pois a fluência na língua oficial é associada
a status. Ainda assim, existem muitas similaridades entre as duas línguas e eu
consegui, em alguns momentos, estabelecer algumas conversas, inclusive com
crianças, com meu parco francês.
Belo Haiti, belos haitianos
Mesmo com todas essas
contradições, Porto Príncipe – e, imagino, o Haiti como um todo – tem uma
beleza encantadora. Cercada de montanhas, a cidade tem uma natureza facilmente
acessível a carro, e no último dia Dharma, Daniel, Tasha e eu fomos a uma
cachoeira pequena e bem gostosa, onde tive a oportunidade de fazer algo que eu
amo: tomar banho nu. No caminho, pela trilha, encontramos vários haitianos
lavando e secando suas roupas, e outros que também tinham vindo para fazer
trilha e se banhar nas cachoeiras (havia outras, mais para frente, mas não
tivemos tempo de ir lá). Foi uma experiência interessante e nunca antes vivida,
tomar banho nu de cachoeira e de repente ver uma dezena de haitianos chegando e
me observando, até eu finalmente decidir vestir meu short e voltar a meu hábito
brasileiro de mostrar quase tudo – mas não tudo.
Mas a joia mais preciosa que
encontrei no Haiti não foram as belas paisagens: foi o povo haitiano. Eu fiquei
absolutamente encantado com a vivacidade do povo, a despeito da pobreza vivida
por tantos. Em um dos dias por lá pensei: será que isso acontece porque quase
ninguém no Haiti assisti TV? Eu tenho a sensação de que a televisão, mesmo que
transmita bons programas, é em si uma tecnologia que estimula a letargia e
rouba a energia. Dharma, numa conversa, me confirma que sim, que ele também
sente que a quase inexistência da cultura de massa permite que os haitianos
mantenham uma vivacidade que ele não enxerga em outros países onde as pessoas
são dominadas pelo que o indiano P.R. Sarkar chamou de “pseudo-cultura”. Outro
amigo meu argumenta que esta vivacidade é a mesma que ele encontra nos países
africanos que visita regularmente, e que é parte do “DNA” do povo africano.
Essa vivacidade se expressa no
olhar dos haitianos que conheci, em sua doçura e, ao mesmo tempo, em sua
energia forte. Segundo as pessoas com que conversei, os haitianos são, em
geral, muito politizados – ouvi um relato em que, voltando de uma outra cidade
para Porto Príncipe, de carro, uma pessoa testemunhou dois jovens no banco de
trás pedindo para continuar ouvindo uma estação de rádio cujo programa discutia
a situação política da Ucrânia – e os dois jovens discutiam animadamente sobre
o assunto.
Claro que é sempre complicado
generalizar a personalidade de um povo a partir de algumas percepções
individuais, por isso aqui não falo do Haiti como um todo, mas do Haiti que eu
conheci. Esse Haiti é o que me causou cansaço físico e energético, devido à
poluição, falta de estrutura, instabilidade social e política, e o que me
encheu meu coração de inspiração e amor, pela beleza de suas montanhas e
delicadeza e força de seus habitantes.
Uma das histórias mais bonitas
que, para mim, refletem essa delicadeza, aconteceu no meu último dia lá: após o
banho de cachoeira, sentamos num lugar sombreado, já na trilha de volta, para
fazer um piquenique. Num certo momento, passa por nós um homem e sua (provavelmente)
filha pequena, e nos dá bom dia. Nós respondemos. Após algum tempo, os dois
voltam e ficam nos olhando. Ele fala em inglês: “ela quer comer”. Meu primeiro
instinto, tendo trabalhado quase dois anos como educador social num projeto
cujo público principal eram crianças que trabalhavam nas ruas, foi de dizer
“não”. Eu aprendi – não pela teoria, mas na prática - durante meu trabalho, que
atender esse tipo de pedido alimenta um ciclo vicioso de exploração infantil,
letargia, consumismo, entre outras coisas.
Eu fiquei quase irritado com o
pedido do homem, na verdade. Mas depois apenas respirei e pensei que o homem
era inocentemente “sem noção” de nos pedir comida daquele jeito tão direto.
Entretanto, Dharma imediatamente atendeu o pedido do homem, e fez um enorme e
gostoso sanduíche para a menina, que o recebeu com um sorriso no rosto que
derreteu meu coração. O homem agradeceu e os dois partiram, felizes. E nós
esquecemos do assunto.
No entanto, alguns vários minutos
depois, eis que ressurge o homem, agora com uma montanha de pés de alface nos
braços – tantos que ele quase sumia atrás. Ele se aproximou e pediu que nós
recebêssemos aqueles alfaces como agradecimento. Naquele momento meus
pressupostos foram por algo abaixo. A minha experiência era com a mendicância,
em que muitas vezes crianças e os adultos que os acompanham (nem sempre seus
pais, pois há adultos que alugam crianças para obterem mais resultados) forçam,
por vezes, um ar de “coitados” que logo muda quando recebem o que querem. E,
depois de receber, partem sem demonstrar qualquer vínculo com a pessoa que lhes
deu algo (como se a pessoa fosse apenas um cliente).
Não que eu julgue esse
comportamento – é uma estratégia de sobrevivência que as pessoas encontraram,
dentro de um Brasil que oferece tão poucas oportunidades para um grande número
de pessoas. E não que eu os esteja responsabilizando – esse é um comportamento
que só existe porque encontra ressonância numa classe média e alta
assistencialista e que não se responsabiliza pelo desenvolvimento das pessoas
que não fazem parte de seu círculo social. Mas, ainda assim, esta é sim uma
dinâmica muito comum, e que me levou a não querer estimulá-la dando comida,
dinheiro ou qualquer outra coisa para crianças ou adultos acompanhados de
crianças.
Mas este homem, ao agradecer um
simples sanduíche retirando de sua própria horta um número de pés de alface
que, certamente, alimentariam mais pessoas – e, acredito, ainda valeriam no
mínimo o mesmo preço – quebrou a minha lógica. Ele deixou de ser o mendigo, que
na minha mente é alguém mais vulnerável que eu, e criou uma relação de igual
poder comigo. Dentro de mim, ele saiu do lugar da pobreza e foi para o lugar da
honestidade, da bondade, da gratidão, da generosidade e da reciprocidade. Na
verdade, ele se tornou mais brilhante e poderoso do que eu mesmo me considerava
naquele momento. Eu bebi de sua luz, e o agradeci internamente por isso.
Novamente, isso não significa que
todos os haitianos agiriam como aquele homem. Durante meus dias por lá, fui
chamado por algumas pessoas que pediam dinheiro. Mas, curiosamente, muito menos
(muito menos mesmo) do que fui chamado em Roma, durante a viagem que fiz para
lá com minha esposa, no começo do ano. E Porto Príncipe é certamente muito mais
pobre que Roma. Talvez tenha sido apenas minha experiência (um amigo me disse
que, sim, o Haiti tem uma cultura de mendicância muito forte), mas talvez haja
nos haitianos algo que se identifica mais com a simplicidade digna do que com a
pobreza que inferioriza. Talvez esse seja um dos aspectos que tornou aos meus
olhos esse povo – e esse lugar – tão belos.
Dharma
Eu fui para o Haiti para dar um
curso de Liderança Sadvipra, uma metodologia que criei junto com meu amado
amigo e mentor Peter Sage, um monge inglês que mora em Washingon DC e que vem
constantemente ao Brasil. Peter é coordenador global dos projetos de
desenvolvimento local AMURT – daí a ligação com a AMURT Haiti. Além disso, é um
dos melhores instrutores de yoga e meditação que já conheci, um facilitador de
processos de desenvolvimento humano poético, criativo, gentil e sagaz, e um
conhecedor de realidades – ele já viajou e viaja há mais de 30 anos por dezenas
de países, e alguns de seus destinos anuais, além do Brasil e do Haiti, são
países da África, como o Kenia, da Ásia, como as Filipinas e da Europa, como a
Islândia.
Já há alguns anos, Peter e eu
conversarmos sobre fazer algo juntos, e finalmente concluímos que nosso desejo
comum é o de colocar a sabedoria do Tantra Yoga, especialmente aquele
sistematizado por P.R. Sarkar, para ajudar mais pessoas a desenvolver sua
capacidade de liderança. O yoga é muitas vezes visto no Ocidente apenas como
uma prática corporal ou, no máximo, como uma prática de meditação ou de
elevação espiritual, num caráter mais religioso. Mas a filosofia completa do
Yoga, como a do Tantra Yoga de Sarkar, possui um vasto espectro de
conhecimentos, que vão desde ferramentas de desenvolvimento pessoal até
princípios para o desenvolvimento social, político e econômico, abrangendo
propostas de economia cooperativa, estrutura política descentralizada, técnicas
para otimização da indústria e da agroindústria, entre outros. Portanto, assim
como acontece com outras fontes de sabedoria espiritual, como a antroposofia,
nós decidimos expandir o yoga para fora das escolas de yoga e leva-lo para o
contexto do desenvolvimento pessoal, profissional, organizacional e social.
Desse desejo, nasceu o programa
de Liderança Sadvipra (sadvipra é uma palavra em sânscrito e significa, em
linhas gerais, buscador da verdade), para o qual desenvolvemos dois currículos:
um mais curto, focado no desenvolvimento pessoal do líder, e outro mais longo,
que inclui os aspectos organizacional, social e político. Resolvemos começar,
nos primeiros anos, com o mais curto e, quando o campo já estiver mais fértil e
sólido, implementar o segundo. Em 2013, fizemos um primeiro curso experimental
no Brasil. Haiti foi o segundo e será seguido por um novo curso no Brasil e, em
seguida, nos Estados Unidos e nas Filipinas.
Este projeto, bem como tudo que
tenho feito na minha vida, é uma expressão direta e muito gratificante do meu
propósito de vida: contribuir para a plena expressão de líderes do coração, que
co-inspirem uma cultura sustentável no planeta. Esta frase, claro, não é apenas
um slogan inspirador: cada palavra possui desdobramentos conceituais e práticos
muito claros em tudo que sou e faço. Um desses desdobramentos, que também está
ligado a meus valores, meus objetivos estratégicos, a minhas visões interna
(quem quero ser) e externa (o mundo que quero criar), é investir em atuar com
pessoas e organizações de contextos diferentes (empresas, ONGs, comunidades
rurais, urbanas, governos, comunidades espirituais, redes) e de culturas e
lugares diferentes. Portanto, esta viagem para o Haiti, para dar este curso,
numa organização como a AMURT, sempre ressoou como uma forma potente e bela de
realizar meu propósito.
A palavra que utilizamos na
Liderança Sadvipra para falar de propósito é Dharma. Esta é uma palavra cada
vez mais conhecida no Ocidente, e geralmente é traduzida como missão ou ação
correta. Outra tradução, talvez a minha preferida, é “a essência natural de
cada entidade”. Assim, Dharma é o que fazemos quando somos nós mesmos,
espontaneamente – e isto é nossa missão. A investigação do que é e de qual é
nosso Dharma é a primeira reflexão deste curso inicial de Liderança Sadvipra,
no qual cada participante explorará de forma teórica, prática e no próprio
corpo sete tendências fundamentais do líder sadvipra. Essas tendências nascem
nos sete centros principais de energia do corpo propagados pelo yoga (os
cakras) e podem ser fortalecidos pelo correto entendimento corporal e mental,
bem como pela prática constante de alguns princípios. A reflexão sobre Dharma é
justamente a que acontece durante a investigação do primeiro cakra.
Uma das belezas de vivermos nosso
Dharma é a possibilidade de podermos relaxar e testemunhar as coisas
acontecerem sem muito esforço, pois como nosso propósito é um lugar de
espontaneidade e poder, cada pequeno passo que damos gera um mundo de sincronicidades,
e traz a sensação constante de que o universo está conspirando a nosso favor.
Mesmo quando recebemos desafios, se olhamos com cuidado para eles, enxergamos
alguma lição fundamental que nos ajudará a avançar em nosso propósito. E assim
foi com tudo nesta viagem: cada pessoa que encontrei, cada conversa que tive,
parecia talhada com perfeição para que eu recebesse o que precisava neste
momento da minha vida. E tudo que vivi nos últimos meses – inclusive ter focado
em aprender francês – parece ter me preparado para retirar o melhor dessa
experiência agora.
Mesmo o desafio de ter que ter
dado o curso sozinho, pois no fim Peter não pôde ir, por algumas questões
urgentes que precisou resolver, parece ter acontecido para que eu pudesse ter
realizações muito profundas sobre mim e meu propósito. Ananta, ou Jean Pierre,
um lindo e doce jovem haitiano, e um dos participantes do curso, me disse no
último dia do treinamento que quando ele me viu, ele não achou que eu seria
capaz de realizar esse trabalho sozinho, mas que depois da primeira hora, e ao
fim do primeiro dia, ele já estava completamente convencido. Um outro
participante, mais velho, disso no segundo dia que ele havia vindo ao
treinamento com a certeza de que seria chato e de que ele não aprenderia muita
coisa, mas que agora ele sentia que sairia de lá com uma bagagem recheada. E
esse é o poder do propósito: quando estamos alinhados com o que viemos fazer
aqui, nunca estamos só ou desamparados, pois a força que guia as estrelas está
nos guiando também. Eu certamente dei meus pequenos passos, compartilhando tudo
que sei e sou como facilitador, mas o resultado inspirador ao qual chegamos
juntos ao final do curso só foi possível porque, junto com a minha força, havia
a força de todo o grupo, e de todo o universo.
Nós éramos um grupo de 16
pessoas, contando comigo. A maioria era de haitianos que trabalham como
animadores ou educadores sociais nos diversos projetos de desenvolvimento local
da AMURT - Haiti. Além deles, havia alguns voluntários, como Daniel e Tasha, e
Dharma, que é o coordenador geral dos projetos. A tradução era um desafio:
Dharma não estava sempre conosco, e pela manhã a pessoa que fazia a tradução,
embora muito querido, não era tradutor profissional, e portanto nem sempre
conseguia traduzir o que era dito, ou traduzia uma outra coisa, diferente do que
eu havia falado. De tarde, tínhamos Michel, um tradutor profissional e também
muito querido.
Ainda assim, todos os pontos
essenciais conseguiam ser transmitidos. O curso começou com um dia de
apresentações mútuas, uma passada geral sobre o que é liderança sadvipra e sua
relação com os cakras, e pela prática de algumas ferramentas de conversa
significativa, como o círculo. Neste dia, a magia que viveríamos juntos já
começou a aparecer: as pessoas iam abrindo sorrisos e seus olhos iam brilhando
à medida em que conversávamos sobre um novo jeito de liderar, menos impositivo,
mais doce e livre, em que o outro não está a serviço do líder ou da
metodologia, mas ao contrário: o líder e a metodologia se adaptam às
necessidades reais das pessoas. No fim do segundo dia, após a reflexão sobre
Dharma (1º cakra) e como se nutrir da força de nossos grupos e comunidades de
apoio (2º cakra), todos nós já estávamos absolutamente maravilhados um com os
outros.
A roda de partilha do Dharma de
cada um, no fim da primeira manhã, foi particularmente especial. À medida que
cada um ia compartilhando sua frase de propósito, construída com muito carinho
ao longo da manhã, os outros iam se entusiasmando e fazendo pequenos sinais com
o corpo, com a voz e com o olhar. Houve até quem quisesse aplaudir o que estava
sendo dito. Todos ficaram encantados com a beleza um do outro, com o brilho
único que cada um trazia para esta vida e que, mesmo com eles já se conhecendo
há alguns anos, não estava claro nem para si, nem para os outros. Depois dessa
manhã, a palavra “Dharma” entrou no vocabulário deles e foi constantemente
repetida em muitas partilhas, até o último momento do curso. Isso me trouxe de
novo a certeza de que todos – absolutamente todos – têm o seu Dharma, e que
estar em contato pleno com ele é estar em contato pleno com a parte mais
amorosa e poderosa de nossa alma.
Os presentes
No projeto Senhor Sustentável (um
dos empreendimentos que toco dentro da Comunidade SER, a organização que
co-criei com outros várias incríveis pessoas), nós dizemos que “o presente é um
presente”. E, de fato, quando estou plenamente aberto para o aqui e agora (o
que inclui estar presente nas minhas lembranças do passado e em meus projetos
para o futuro) coisas extraordinárias acontecem. E durante os dias de cursos,
elas aconteceram sem parar.
À medida que o curso ia
avançando, a sensação é de que todos nós estávamos nos apaixonando – um pelos
outros e todos pelo próprio Amor, na sua forma maior. À medida que avançávamos
pelo 3º cakra, aprendendo a identificar necessidades e desejos e expressá-los
com nosso fogo criativo – em vez do destrutivo, e pelo 4º cakra, investigando
como transcender dicotomias e abrir o coração para trabalhar com a
complexidade, os testemunhos iam ficando mais pungentes e tocantes. Algumas
pessoas relataram estar entendendo pela primeira vez a filosofia da organização
na qual trabalham – alguns há cerca de 10 anos. Muitas relataram sua satisfação
por sentir que tudo que estava sendo trabalhado tinha um profundo significado e
conexão com a vida prática deles. Nós começamos a refletir sobre o Haiti que
queremos, integrando eventos difíceis, como o terremoto vivido há alguns anos,
como elementos que poderiam ser incorporados a uma narrativa criativa e
poderosa que cada líder é capaz de cocriar com os outros e com a vida. As
pessoas começaram a falar para Dharma, nos bastidores, que o treinamento
deveria ser dado para a organização inteira, e que eles gostariam que nós
(incluo aqui o Peter, mesmo se ele não esteve fisicamente presente) voltássemos
outras vezes, para continuar o aprendizado.
Claro que a parte mais importante
de tudo isso – o amor e a felicidade gerados por todos nós – não dá para
descrever aqui. É impossível de se transmitir algo como isso em palavras. Mas
talvez seja possível compartilhar um relance, em dois momentos muito significativos.
No último dia, logo após o almoço, nós fizemos uma dança circular, usando o
Kiirtan (mantra cantado em voz alta, com instrumentos) Baba Nam Kevalam (que
significa “Tudo é expressão do Amor”). Na dança, todos abençoam uns aos outros,
e ao fim todos terminaram numa espécie de êxtase – mesmo aqueles que poderiam
ter algum preconceito, por praticarem uma religião específica. Ainda assim, eu
comentei que eles poderiam fazer essa dança nas comunidades em que trabalham,
mas traduzindo o mantra para o creole. Eles imediatamente fizeram isso, e nós
combinamos de refazer a dança ao final, agora em creole.
Ao final, depois de um exercício
para estimular que cada pessoa se colocasse como líder como instrumento da vida
ou de uma força maior, dançamos cantando em creole e terminamos virados para o
centro, abençoando a todos nós e ao mundo. Ao fim, espontaneamente, os haitianos
puxaram um grito que é, na verdade, um grito de guerra dos praticantes de
Ananda Marga (a organização criada por P.R. Sarkar), que significa “Ao Infinito
Amor, Vitória!”. Nós nos abraçamos e começamos as despedidas.
Quando as despedias já estavam
acabando, Steeve me puxou no canto, trazendo com ele uma das participantes.
Durante todos os dias do treinamento, eu observei atentamente esta mulher: seus
olhos doces e simples, seu ar humilde e sua vibração bondosa me conquistaram
logo de cara. Steeve me disse: “ela pediu que eu viesse junto porque ela quer
te falar uma coisa”. Eu concordei. Então, ela me olhou nos olhos. Ela não
simplesmente olhou na direção dos meu olhos. Ela OLHOU nos meus olhos. Com
doçura e firmeza. E falou algumas palavras em creole. Steeve traduziu: “Ela
disse que o nome dela é Marianette. Mariannete. E que ela espera que você nunca
esqueça disso”. E eu derreti. Derreti totalmente diante daquele gesto tão
singelo, tão poético e tão profundamente terno.
Seguir em frente
E é claro que, agora, eu quero
mais. Todos nós saímos encantados. Em todos os tempos livres, e no meu último
dia, durante o passeio até a cachoeira, Dharma, Daniel, Tasha e eu já
esculpimos chamados, desejos, projetos, e reconhecemos uns nos outros um enorme
desejo de seguir em frente. Só que cada vez mais, fiz questão de afirmar, num
passo mais respirado, colaborativo, investigativo, e conectado com o propósito
do que estamos fazendo. Não quero mais me deixar levar por qualquer pressa
assistencialista ou super empreendedora, baseada numa liderança heroica que já
não me faz mais sentido.
Por isso, desde já estamos
traçando juntos um caminho para empoderar líderes da AMURT e a organização como
um todo para que possam cocriar uma organização mais colaborativa e
sustentável. Queremos chamar uma conversa com toda a organização – não apenas
com as lideranças principais. Queremos co-anfitriar um planejamento estratégico
que já seja, em si, um treinamento na arte da liderança colaborativa. Queremos
praticar a Liderança do Coração. Queremos contribuir para expandir o que
vivemos juntos e chamar outras organizações e, aos poucos, lideranças em outras
esferas para construir um Haiti mais sustentável.
Não posso dizer que conheci o
Haiti a fundo. Entretanto, num nível mais além do que o das palavras, sinto que
há um Haiti – talvez apenas o meu Haiti, mas ainda assim, ele é um lugar
verdadeiro e significativo – que mora em meu coração. Um lugar cheio de
Marianettes, que eu sempre guardarei dentro de mim.
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