sexta-feira, 26 de setembro de 2014
Um olhar para processos
Estamos muito acostumados a
refletir sobre “o que” fazemos. Por exemplo, discutimos muito na educação sobre
quais as metodologias que utilizamos e as atividades que realizamos com os
educadores, numa parada pedagógica, ou com os educandos, nos diversos espaços
de aprendizagem que possuímos. Em contrapartida, não discutimos com a mesma
frequência o “como” fazemos o que fazemos, ou seja, qual a nossa maneira de
vivenciar e se apropriar dessas metodologias e atividades.
Fazendo uma analogia, podemos
considerar que o “o que” é o instrumento (como um violão), a arma (como uma
espada) ou o sistema operacional (do computador, por exemplo). Digamos que
somos um violonista, um espadachim, ou um profissional de tecnologia da
informação. O “como” está em nossa habilidade e maestria para tocar o violão,
manejar a espada ou navegar no sistema operacional. O “como” vai depender da
experiência acumulada de cada pessoa para usar esses recursos.
É importante entender que o
“como” não está relacionado ao quanto a pessoa conhece teoricamente sobre um
determinado assunto. A leitura completa de um manual para aprender a tocar
violão, usar a espada ou navegar no computador não garante que a pessoa, no
momento seguinte, tenha adquirido a maestria nesses contextos. Mesmo que
sejamos ótimos autodidatas e consigamos dominar a teoria (o “o que”) em poucas
semanas, será necessário, a depender da pessoa, meses e até anos de dedicado
esforço para se alcançar algum nível de competência no “como”.
“Arte é tudo aquilo que não se
aprende nos manuais”, diz um ditado. A arte é o que separa um excelente tocador
de violão (que eventualmente nunca leu nenhuma teoria a respeito) e um tocador
mediano (que pode dominar um grande conhecimento teórico a respeito do tema). Ela é adquirida pelo suor e pelo esforço
repetido do dia a dia, em que percebemos, por exemplo, que se mudarmos um pouco
a posição da mão, se tocarmos com mais leveza ou se relaxarmos mais os ombros,
o som do violão sairá mais fácil e suave. Que se mudarmos nossa intenção
interna da raiva para o amor, se respirarmos fundo e ficarmos presente, o giro
da espada sairá mais focado e assertivo. Que se fizermos um certo caminho de
atalhos no computador, que não o que estava no manual, chegaremos mais rápido
no programa que queremos abrir. E por aí vai.
E quando assumimos que o “como” é
tão importante quanto o “o que”, começamos a pensar não somente em quais sãos
as metodologias mais eficientes para alcançarmos o que queremos, mas também em quais
são os processos mais eficientes para incorporarmos e nos desenvolvermos nessas
metodologias. Quais os processos que farão com que o violonista cresça como
pessoa capaz de tocar o violão, que o espadachim cresça como pessoa capaz de
operar a espada etc? A isto chamamos “olhar de processo”, algo que tem crescido
tanto entre pessoas e grupos que pensam inovações no campo do desenvolvimento
humano, organizacional e social, que fez com que surgisse a máxima de que “o
processo é o resultado”.
O que isto quer dizer?
Vamos imaginar um cenário, em que
dois educadores têm uma meta: diminuir o número de conflitos na escola. Para
isso, eles foram treinados numa metodologia: por exemplo, a Comunicação Não
Violenta, de cujo passo a passo eles se apropriaram. Mas, no caso do primeiro
educador, ao realizar o trabalho, mesmo seguindo todos os passos previstos pela
metodologia, ele sente que os conflitos não diminuíram, ou que ele não está
conseguindo resolver tantos conflitos quanto gostaria, ou ainda que o clima na
escola não está melhorando, mesmo com a sua atuação. Ao mesmo tempo, numa outra
escola, o outro educador, com o mesmo objetivo e a mesma metodologia nas mãos,
está alcançando resultados excelentes.
Digamos que, certo dia, os dois
sentam para conversar e trocar sobre sua prática. O primeiro se queixa dos
resultados insatisfatórios que está alcançando, os quais não consegue
compreender, uma vez que está seguindo à risca o que aprendeu. O segundo lhe
pede que conte um pouco de como está utilizando a metodologia, solicitando que
conte a história de um momento em que tentou fazer uma mediação de conflito.
Ouvindo a história, vai se
revelando que, embora os passos da CNV estivessem sendo seguidos à risca, o
educador os estava aplicando com dureza, sem que as palavras de apreciação e a
expressão de sentimentos viessem de um lugar de verdadeiro contato com os
próprios sentimentos, mas a partir de uma conexão meramente racional e
superficial com seu próprio corpo e suas necessidades; que ele estava
enrijecido no passo a passo, inclusive dando “bronca” nas pessoas que não
seguiam os passos corretamente, fazendo-as sentirem que a CNV era uma obrigação
e algo chato; que a metodologia estava sendo imposta às pessoas, em vez de
haver um trabalho gradativo de convidar as pessoas a perceber, no seu próprio
ritmo, a importância deste tipo de comunicação; que ele reclamava quando as
pessoas não respondiam positivamente ao passo a passo, transferindo o resultado
negativo do processo para as pessoas, fazendo-as se sentirem mal por não
estarem conseguindo se comunicar de maneira não-violenta.
Em resumo, o educador estava
usando um “o que” não violento (a metodologia da CNV) com um “como” violento,
que não tem a ver com a metodologia em si, mas com a habilidade da pessoa em
operá-la. Este “como” é o processo. Como eu faço o que eu faço? Como eu opero uma
metodologia como a CNV? Se meu processo é duro, rígido, superficial, e pouco
auto-responsável, meus resultados serão incipientes, não importa quão eficiente
for a minha metodologia, e quão nobres forem os resultados que eu estou
tentando alcançar.
Digamos que este educador, agora,
pede ao seu colega, que está alcançando resultados extraordinários, que lhe
conte o que tem feito. Este lhe relata histórias em que ele mesmo buscou
praticar a CNV consigo, aprofundando em suas feridas e seus sentimentos; em que
exercitou a empatia para saber quando era o momento certo de usar a ferramenta,
para que as pessoas não se sentissem obrigadas a seguir o passo a passo; em que
ultrapassou preconceitos internos e suas questões com tocar e ser tocado
fisicamente, buscando expressar e verdadeiramente sentir amor pelo outro, ao sorrir
e abraçar; relata que intensificou processos pessoais de autoconhecimento, seja
pela terapia, pela meditação ou qualquer outro recurso, para perceber mais
quando ele está usando o CNV de forma positiva e quando está usando de forma
violenta; explica como está buscando olhar para suas próprias falhas quando o
outro não responde como esperado. E por aí vai.
O educador, neste caso, está
usando um “o que” não violento com um “como” igualmente não violento. Neste
caso, a efetividade será máxima. O processo é tão importante que poderíamos até
dizer que mesmo que este educador não tivesse qualquer conhecimento de CNV, se
ele estivesse fazendo o que estivesse fazendo de uma maneira (com um “como”)
amoroso, flexível, receptivo, conectado, profundo etc, que ainda assim ele obteria
ótimos resultados.
Embora, certamente, “o que” e
“como” tenham ambos a sua importância. Um péssimo espadachim com uma ótima
espada pode fazer estragos. Um ótimo espadachim com uma péssima espada pode
fazer milagres e tirar leite de pedra. Mas um ótimo espadachim com uma ótima
espada pode atingir resultados extremamente poderosos – para si e para os
outros.
Portanto, o olhar de processos
implica questionar-se sobre a maneira como fazemos as coisas – qualquer coisa.
Por exemplo, como damos limites a nossos filhos e educandos. Praticamente
qualquer educador concorda que dar limites é importante. Dentro disto, há os
que consideram que uma certa metodologia é mais efetiva que outra para alcançar
este resultado. E, uma vez escolhida a metodologia, a maneira como cada um a
opera é o que, de fato, vai gerar o resultado esperado – ou não.
Cultivar o olhar de processos não
é simples, contudo, por diversas razões:
1) Ele
considera a subjetividade como importante: quem eu sou, minha história, meus
padrões emocionais e minha experiência são inevitavelmente questionados como
parte essencial dos resultados que atinjo. Isso, obviamente, mexe com o medo
que todos temos de olhar para nossas falhas, de receber feedbacks e de
eventualmente perceber que não podemos nos esconder atrás de nossos
certificados ou de nosso nível de conhecimento sobre um assunto. Quando
questionamos o processo, muitas vezes nos damos conta de que não precisamos
aprender novos conhecimentos: necessitamos praticar o que já sabemos ou, o que
pode ser ainda mais desafiador, temos de fazer mudanças (às vezes grandes) em
nosso senso de identidade, transformando a maneira como pensamos, sentimos, nos
relacionamos e até mesmo mexendo em histórias pessoais (que, aparentemente, não
têm nada a ver com nosso trabalho) e que determinam nossas crenças sobre as
pessoas, o mundo e a vida, bem como a maneira como fazemos o que fazemos.
2) Ele
nos leva para observar e perceber o sutil e o intangível, o que é cada vez mais
desafiador numa sociedade que privilegia o concreto e o tangível. A
tangibilidade tem a ver com o “gabarito” ou com a “formação” (que vem da
palavra “forma”). Ou seja, tudo que precisamos fazer é ver se o que fizemos
corresponde a um resultado já esperado (o gabarito) ou a algo que já foi
pensado e que já é conhecido (a forma). O tangível é válido e importante como
um “norteador”, assim como um mapa, para termos alguma ideia de para onde
estamos navegando. Entretanto, como o mapa jamais corresponde 100% ao
território real, quando os dados reais não correspondem ao gabarito ou à forma,
ou nos sentimos inseguros e sem saber o que fazer, ou violentamos o processo
para que ele se transforme artificialmente no resultado esperado – por exemplo,
obrigamos a criança a pedir desculpas para o colega, independente dela estar
verdadeiramente vendo sentido naquilo. Sentimos um breve alívio por ver o
resultado visível e tangível do que esperávamos, mas a repetição da mesma
situação (o menino que volta a brigar, às vezes com ainda mais violência, ou que
passa a esconder mais o que faz) comprova que o processo utilizado não trouxe,
de fato, o resultado esperado – ao menos não em longo prazo, de forma
sustentável. Como o intangível não é padronizado e repetitivo, pois cada pessoa
tem uma história, uma identidade, e terá um jeito único de fazer as coisas,
sentimos que não temos tempo ou paciência de observar os detalhes e as
sutilezas de cada pessoa e sua maneira de fazer o que faz. Por isso, “chapamos”
nosso olhar para poupar energia – basta esperar que todos ajam de acordo com o
gabarito. Observar e dar nome para o intangível, ou seja, diferenciar, de forma
racional, qual é o jeito da pessoa “A” para operar a CNV, em relação à pessoa
“B”, implica muita escuta, receptividade, capacidade de pensamento abstrato, de
pensar o que não foi ainda pensado, entre outros, e atualmente não só temos
pouco costume de fazer isso mas, principalmente, não temos muitos espaços onde
essa habilidade pode ser cultivada.
3) Ele
coloca o corpo e o aqui e agora como o centro do processo que nos levará a atingir
os resultados que queremos. Mesmo que eu, como professor de violão experiente,
já tenha várias dicas de processo para dar para meu aluno (como, por exemplo,
um detalhe de posicionamento de mão que pode ajuda-lo a avançar mais rápido), o
aluno terá de criar suas próprias conexões neurais, exercitando em seu corpo as
dicas que dou como professor, experimentando outras que sejam suas, e avançando
um pouco mais a cada momento. O processo acontece no corpo, e este não pode ser
acelerado, tal qual uma planta não pode crescer de um dia para o outro. E mesmo
que tentemos acelerar artificialmente esse processo (tal qual uma planta cresce
mais rápido a base de fertilizantes e agrotóxicos), o resultado final será um
aluno pouco apropriado do processo, pouco empoderado e pouco seguro para fazer
o que faz. A perspectiva do corpo como centro do processo traz, novamente, o
desafio da subjetividade, numa sociedade que busca ignorar o corpo e
privilegiar os processos puramente mentais. Mexer no corpo, como já dito, é mexer
nas emoções, nas histórias do passado, e isto é algo que não desejamos fazer
conosco muitas vezes – no máximo, queremos fazer com o outro. E focar no aqui e
agora é admitir que o “o processo é o resultado”, ou seja, que em vez de
apostar todas as nossas fichas no resultado que vimos ali na frente (por
exemplo, o aluno tocando belamente uma música), estamos apostando todas as
fichas nos avanços que podem ser alcançados neste exato momento – e, portanto,
mesmo que aos olhos do resultado (do “o que”) avancemos pouco, acreditamos na
importância de garantir que aquele exato momento seja o mais inesquecível
possível, cuidando do processo (o “como”). Só que isto, mexe com a nossa
ansiedade, que pode ser enraizada em expectativas unicamente nossas ou
alimentada pelas expectativas do nosso trabalho, da sociedade etc, que exigem
que mostremos resultados tangíveis para que sejamos reconhecidos pelo que
fazemos.
Com todos esses desafios à nossa
frente, fica evidente que aprender a cultivar um olhar de processos só fará
sentido se realmente nos apropriarmos, em nosso corpo, dos benefícios profundos
que esse olhar traz. Quando temos algumas experiências de viver um processo
poderoso e sustentável e, em longo prazo, percebermos o resultado em nós,
começamos a perder o medo de “soltar” os velhos padrões e nos habituar a estar
sempre nos renovando e refinando nossos processos. Pois, diferente do “o que”,
que pode ser o mesmo para sempre (eu posso tocar violão a vida inteira), o
“como” evolui a cada instante (eu posso aprofundar minha maestria no
instrumento e aprender novas formas de usá-lo até meu último suspiro).
Também é importante entender que
o olhar de processo, justamente por não se basear em gabaritos e formas, não é
um olhar julgador. Em teoria, ninguém deveria ser “condenado” por conduzir um
“mau” processo. Não existem maus processos. Existe o melhor processo que
conseguimos sustentar, considerando nossa história e o que vivemos até agora.
Nós sempre estamos utilizando a melhor estratégia que temos, dentro das melhores
crenças que conseguimos cultivar até o momento, para atender as necessidades
que possuímos.
Por isso, se observamos em nós
pontos a serem melhorados (ou até totalmente modificados) em nossa maneira de
fazer o que fazemos, em vez de nos fechar, pelo medo das mudanças que teremos
de fazer, podemos olhar para isso com compaixão. Inclusive porque mesmo o ato
de mudar é um “o que”, que pode ser vivido por meio de diversos “comos”.
Podemos incorporar e nos mover para o olhar de processos nos criticando e nos
julgando, exigindo de nós mesmo que desenvolvamos esta habilidade muito rápido,
ou nos acolhendo com empatia e nos dando o tempo parar errar, aprender com o
erro, observar quais são nossos velhos processos e construir, com calma e
carinho, os novos processos que queremos sustentar. Só isto, por si só, já
trará mudanças poderosas em nossas
vidas.
E, se sentirmos que já
sustentamos os processos que gostaríamos, que já fazemos o que fazemos como
acreditamos, que possamos então nos unir, cada vez mais, em redes de troca onde
possamos aprender um com o outro, para que alcancemos níveis de maestria cada
vez maiores na habilidade de conduzir processos poderosos que geram resultados
sustentáveis. E quem sabe, assim, consigamos construir uma educação que
reconhece e enxergue quem as pessoas são agora, e não o que elas deveriam ser,
e que se sente empoderada para implementar, de fato, as metodologias nas quais
acreditamos.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário